Menna - Transexualidade, Transgenitalização e o Gênero Enquanto Construção Social

No Brasil, a Constituição Federal de 1988 representa um marco de avanço nos direitos sociais e das diferentes categorias, com o objetivo de “assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos” (BRASIL, 1988).

Transsexualidade

É nesse contexto de mudanças constitucionais que se busca efetivar os direitos dos transexuais. Partindo de uma análise histórica e crítica, o presente artigo demonstrará algumas questões pertinentes e que são de relevada importância para a categoria ora abordada.

Histórica e culturalmente, a transexualidade foi entendida como um distúrbio, como um desvio psicológico, sendo inserido no rol de doenças pela Organização Mundial de Saúde- OMS. E que o gênero foi naturalizado de forma a ser definido a partir do sexo anatômico que o indivíduo possui.

O Gênero Enquanto Construção Social

Surge então, a necessidade de se pensar em gênero enquanto construção social, de acordo com as experiências de vida e subjetividade de cada indivíduo, da maneira como ele se sente, se relaciona e se insere na sociedade. A partir de uma visão que permita espaço para diversidade humana, sem constrangimentos, sem preconceito, sem todas as formas de violência que são praticadas contra aqueles que são postos às margens da sociedade por não se enquadrarem num modelo hegemônico dominante: binário de gênero e heterossexual.

É partindo da visão de gênero como construção social e permitindo que os indivíduos identifiquem seu gênero a partir de sua subjetividade, como se sentem e se encaixam nas relações cotidianas, que a transexualidade será retratada não como um distúrbio psicológico, e neste diapasão a necessidade de se construir uma reflexão voltada para a concretização de direitos dessa categoria, pautados no princípio da dignidade da pessoa humana de forma a desvincular a necessidade de cirurgia de mudança de sexo para a retificação do nome e sexo dos transexuais.

Gênero Dissociado das Características Físicas

Somente o entendimento de gênero dissociado das características físicas e biológicas, atrelado a concepção de livre escolha a identidade de gênero e diversidade humana, permitirá a compreensão dos direitos que os transexuais almejam alcançar através de suas lutas e movimentos sociais.

Posto que, em nosso ordenamento jurídico a omissão legislativa tem levado a decisões divergentes quanto ao deferimento do pleito referente à mudança de sexo, onde é possível vislumbrar julgados que indeferem a mudança do registro condicionando-a a necessidade de cirurgia, enquanto outros, pautados no princípio da dignidade da pessoa humana, deferem o pleito entendendo que o gênero vai além de uma questão meramente biológica e que não permitir àquela pessoa a adequação de seus documentos seria fortalecer uma realidade repleta de violências e situações humilhantes a que os transexuais estão expostos diariamente.

Constituição Federal e as Jurisprudências

O uso da Constituição Federal e das jurisprudências existentes em nosso ordenamento jurídico foram fundamentais para analisar como o direito tem se comportado frente a esta matéria.

Definição de Gênero

Inicialmente, antes de conceituar o que é a transexualidade, precisamos definir o que se entende por gênero. Na psicologia, em meados da década 70, o conceito de gênero surge atrelado às características biológicas pertencentes ao sexo masculino e ao sexo feminino. Posteriormente, na metade do século XX, o debate sobre gênero muda sua vertente, deixando de lado o caráter biológico ligado ao sexo, passando o gênero a ser considerado pela psicologia como uma característica inerente à subjetividade do indivíduo.

O gênero é uma construção social, edificado através das relações sociais que as pessoas estabelecem.

Observa-se que o entendimento de gênero enquanto construção social, para além do caráter biológico se faz necessário para possibilitar a compreensão de como se regem as relações sociais e como os sujeitos são definidos em nosso meio social, de forma que se possibilite que a definição de gênero seja fixada com base no que sente e como se identifica cada pessoa.

O Gênero e o Direito

No âmbito do Direito, a discussão sobre gênero não determinada pelo sexo é uma questão polêmica e recente. É através das jurisprudências que se é possível visualizar a grande divergência do entendimento sobre gênero: existência de posicionamentos que entendem que o gênero obrigatoriamente deve ser definido pelo sexo biológico que o indivíduo possui, como os posicionamentos vanguardistas que ligados a uma concepção que tem respaldo no direito à livre identificação de gênero, entendem que o gênero está ligado a forma como o indivíduo se identifica.

Projetos de Lei

Nessa esteira, tem-se tramitando na Câmara dos Deputados o Projeto de Lei nº 5002/2013, de autoria dos deputados Jean Wyllys e Erika Kokay que traz não só a definição de identidade gênero, como o direito à livre identidade de gênero, e o direito de toda pessoa mudar seu nome registral sem necessidade de cirurgia ou de outros procedimentos médicos, sempre que o seu nome não coincidir com sua identidade de gênero.

A importância de se entender o gênero para além da genitália, e de características físicas/corpóreas do indivíduo é fundamental para compreender aqueles que reivindicam um gênero ao qual socialmente foi estabelecido que eles não fazem parte.

Ao se interpretar gênero apenas em função do que foi definido hegemonicamente pelas relações estabelecidas, pelo que foi socialmente construído em nossa sociedade, da dicotomia entre o masculino e o feminino, deixamos de abarcar uma parcela da população que não sente pertencer ao gênero a qual foi lhe imposto.

Essa dicotomia se apresenta na medida em que não há lugar para algo que fuja às convenções estabelecidas.

Gênero X Genitália

Conclui-se que a presença do sexo anatômico tem sido o responsável pela definição de homem e mulher, e que estas seriam as únicas possibilidades de identificação em nossa sociedade, bastando que o indivíduo apresente um pênis ou uma vagina para assim ser definido o seu gênero. Desta maneira, qualquer um que se identifique com o sexo oposto ao biológico que possui não se encaixa em nossa sociedade e acaba sendo excluído e marginalizado. Esse tipo de visão é acrítica, pois desconsidera as vivências e experiências dos sujeitos, e naturaliza algo que na verdade é uma construção social, uma vez que ao longo dos milênios as relações estabelecidas entre os homens sempre se modificaram.

Heterossexualismo como Conduta Padrão

Outro ponto a ser levantado é que socialmente o heteressexualismo foi constituído como conduta normal a ser seguida em nossa sociedade, a qual estamos acostumados a reproduzir de forma natural. Na medida em que o heteressexualismo foi adotado como única conduta a ser aceita naturalmente, ele se afirmou como um regime de poder e de forma opressora ao homossexualismo.

Transexualidade

Pode-se entender o transexual como aquele que não se identifica com o sexo biológico que porta, que vê. Ele sente e se identifica com o sexo biológico oposto e assim quer ser reconhecido e respeitado, e que o reconhecimento de seus direitos tanto socialmente como legalmente, através da positivação destes, ocorram independentemente da escolha de se optar ou não pela realização da cirurgia de transgenitalização.

No Brasil, o transexual faz parte da parcela da população que é alvo de preconceitos e sofre tanto com a violência física como a verbal, presente todos os dias em seu cotidiano, por não se encaixarem nos ditames e padrões impostos numa sociedade que ainda se mantém conservadora e para a qual o sexo anatômico deve ser o determinante pelo comportamento do homem perante a sociedade.

A Estigmatização e a Discrminação

A abordagem do transexual como pessoa que é portadora de transtorno mental reforça a estigmatização destas pessoas. É importante se voltar para alternativas que desconstruam a visão do transexual como alguém doente. O sofrimento a que estão expostos são consequências da discriminação latente em nossa sociedade.

As mudanças sociais, as lutas das categorias transexuais, e novos estudos têm ajudado na desconstrução desse paradigma, mudando a releitura que se tinha sobre gênero.

A identidade de gênero do indivíduo é resultado de sua interação com o mundo, de sua subjetividade, de como ele se sente, e se identifica nas relações sociais que estabelece durante sua vida.

Cirurgia da Transgenitalização

A cirurgia de transgenitalização consiste na mudança de sexo a partir de um procedimento cirúrgico. Importa relatar que nem todo transexual sente a necessidade de passar pela cirurgia, como também existem pessoas trans que para elas é imprescindível a realização da cirurgia de transgenitalização.

A cirurgia de transgenitalização é um dos procedimentos que fazem parte do processo transexualizador. Não devendo ser entendida como cura para o transexual, e sim, como uma alternativa que proporcione melhor qualidade de vida a estas pessoas.

No Brasil, a cirurgia de transgenitalização, ou seja, de mudança de sexo, não era permitida. A conduta do médico que realizasse esse procedimento cirúrgico era penalizada com base no artigo 13 do Código Civil.

Nesse contexto, a cirurgia de transgenitalização era um procedimento que se realizado poderia acarretar em sanções para os médicos, uma vez que era proibida. O médico-cirurgião, Roberto Farina, em 1975 foi condenado a pena de dois anos de reclusão com base no artigo 129 do Código Penal, pela realização de cirurgias de transgenitalização que vinha realizando desde 1971. O teor de sua condenação revelou o grau de conservadorismo presente nos magistrados da época. Apenas em 1977 a cirurgia passou a ser regulamentada pelo Conselho Federal de Medicina (DIAS, 2011, p.182-183).

No Brasil, com o avanço dos direitos sociais, das conquistas pelas minorias, e a exigibilidade pela garantia de seus direitos, a cirurgia de transgenitalização passou a ser oferecida pelo Sistema Único de Saúde - SUS a partir de agosto 2008.

A cirurgia de transgenitalização, ou de redesignação sexual, como também é conhecida, deve ser entendida como um direito do transexual, pois condiz com o princípio da dignidade da pessoa humana em proporcionar a essas pessoas uma melhor qualidade de vida e não como doença como entendem os médicos.

No entanto, para que o transexual tenha a oportunidade de realizar a cirurgia ele é submetido a um protocolo médico, onde constará o laudo de cada profissional que participará do seu acompanhamento que antecede a cirurgia de transgenitalização, que atestará ou não se o sujeito é um transexual. Logo, mesmo que o sujeito se identifique com outro gênero e sinta a necessidade de fazer a cirurgia, essa só será possível se uma equipe médica assim decidir.

Dra Raffaela Gadelha  Dra. Raffaela Gadelha
Fragmentos do Trabalho de Conclusão
Orientadora: Ana Mônica Medeiros Ferreira