As mulheres na mira da reforma da Previdência

A proposta de reforma da Previdência e da Assistência enviada pelo Executivo ao Congresso Nacional, na forma da PEC 287 (Proposta de Emenda Constitucional nº 287), tem entre os propósitos a correção de “distorções e inconsistências do atual modelo”, criando regras únicas de acesso à aposentadoria para todos os trabalhadores. Em outras palavras, a proposta pretende acabar com o princípio da solidariedade social, que está presente na concepção de Previdência desde a promulgação da Constituição Federal (CF) de 1988 e que busca dar tratamento diferenciado a segmentos populacionais com condições desiguais de inserção no mercado de trabalho.

Se essa estratégia de uniformização for aprovada, as mulheres, em particular, serão muito penalizadas. Com as novas regras, elas teriam que atender aos mesmos critérios fixados para os homens e passariam a ter direito de acesso à aposentadoria somente aos 65 anos de idade, desde que completassem 25 anos de contribuição, pelo menos. Ou seja, as mulheres seriam afetadas tanto pela elevação da idade mínima quanto pelo aumento do tempo mínimo de contribuição e, mais ainda, pela combinação desses dois novos requisitos. Além disso, o requisito de idade mínima valeria independentemente do fato de as mulheres trabalharem na área urbana ou rural, no serviço público ou na iniciativa privada, na educação básica ou nas demais ocupações.

Para muitas das mulheres filiadas ao Regime Geral de Previdência Social (RGPS1), a elevação para 25 anos do tempo de contribuição mínimo para a concessão do benefício, hoje fixado em 15 anos para a aposentadoria por idade, poderá significar a impossibilidade da aposentadoria. No caso das mulheres seguradas em Regimes Próprios de Previdência Social (RPPS) - cuja regra básica de aposentadoria prevê, como mínimos, 60 anos de idade e 30 anos de contribuição - a PEC vai impor aumento da idade mínima de aposentadoria, além de eventuais perdas no valor do benefício obtido. Nesta Nota Técnica, argumenta-se que, ao suprimir o direito concedido às mulheres de se aposentarem cinco anos mais cedo do que os homens e, ao mesmo tempo, alongar o tempo mínimo de contribuição, a PEC 287 ignora as desigualdades de gênero que ainda caracterizam o mercado de trabalho, as relações familiares e políticas públicas no país. Mesmo com a modernização dos costumes e o aumento da participação no mercado de trabalho, as mulheres ainda são as principais responsáveis pelo trabalho reprodutivo, o que faz com que também sejam muito afetadas na vida laboral. Este sobre-esforço pode ser sintetizado na dupla jornada realizada pela maioria delas, resultante da acumulação das horas de trabalho remunerado com as horas dedicadas aos afazeres domésticos e cuidados familiares. Outro indicativo é que a maior parte das aposentadorias concedidas às trabalhadoras é por idade, porque a maioria delas tem muita dificuldade para comprovar o mínimo de contribuição exigido hoje pela lei para a aposentadoria por tempo.

Mas, além das mudanças nas regras de acesso à aposentadoria, a PEC 287 também indica alterações profundas nos valores e nas regras de acesso às pensões por morte e ao BPC (Benefício de Prestação Continuada, que é o benefício da Assistência Social). A proposta também proíbe, como regra geral, o acúmulo de benefícios. Em todas essas situações, as mulheres são o público majoritário.

Por último, a combinação das mudanças propostas para as mulheres e para categorias profissionais específicas potencializa os impactos adversos da PEC sobre algumas trabalhadoras em especial. Tal é o caso das professoras da educação básica (tanto do setor público quanto do privado) e das trabalhadoras rurais, que passarão a enfrentar dificuldades bem maiores para se aposentar, se a proposta for aprovada.

O objetivo desta Nota Técnica é aproveitar as mobilizações que se estendem ao longo de todo o mês de março, a propósito do Dia Internacional da Mulher, para mostrar às trabalhadoras e aos trabalhadores a inadequação dos fundamentos da PEC 287, no que tange a esses aspectos específicos envolvendo as mulheres. A discussão apresentada aqui não se pretende exaustiva e é mais um complemento ao que já foi dito pelo DIEESE na Nota Técnica no. 168, já publicada, e intitulada PEC 287: a minimização da Previdência pública.

A cobertura previdenciária e as mulheres

A cobertura previdenciária aumentou no Brasil, nos últimos 14 anos. Segundo informações do Anuário Estatístico da Previdência Social, em 2001, o número de aposentados e pensionistas no RGPS era de 18,6 milhões de pessoas - 44,1% homens e 55,9% mulheres. Em 2015, esse número chegou a 28,2 milhões de pessoas, com a participação de 43% de homens e 57% de mulheres. Considerando apenas o público feminino, entre 2001 e 2015, houve aumento de 10,4 milhões para 16,4 milhões no total de aposentadas e pensionistas, o que corresponde a crescimento de 57,8%. No fim de 2015, 56,7% dos benefícios previdenciários e acidentários do RGPS e 52,8% dos benefícios assistenciais destinavam-se às mulheres (MINISTÉRIO DA FAZENDA, 2015).

Esses resultados podem ser explicados tanto pelo aumento da participação das mulheres no mercado de trabalho, que vem contribuindo sobremaneira para maior representatividade delas no acesso aos benefícios previdenciários, quanto pelo aumento da longevidade da população brasileira, em combinação com a sobrevivência mais longa das mulheres.

Com relação ao tipo de cobertura, a aposentadoria por idade tem sido a modalidade de aposentadoria mais comum entre as trabalhadoras, em razão da dificuldade que a maioria delas tem para alcançar o tempo mínimo exigido pela lei para se aposentar por tempo de contribuição (em geral 30 anos, no setor público e no setor privado, e 25 anos, para as professoras da educação básica). Novamente de acordo com as informações do Anuário Estatístico da Previdência Social, em 2015, as mulheres corresponderam a 62,6% do total de aposentadorias por idade concedidas no RGPS, contra apenas 37,4% de homens. Em contrapartida, entre as aposentadorias por tempo de contribuição, os homens corresponderam a 69,7%, e as mulheres, a 30,3%. Já na aposentadoria por invalidez, eles representavam 57,7% e elas, 42,3%.

Outros benefícios previdenciários como o salário-maternidade, a pensão por morte e o BPC – esse ligado à Assistência Social – também têm maior incidência entre as mulheres. Em 2015, do total de dependentes que receberam pensão por morte, 84,4% eram mulheres e 15,6%, homens. Os benefícios assistenciais ao idoso, por sua vez, foram distribuídos em 58,5% para as mulheres e 41,5% para os homens.

Mas apesar de haver maior proporção de mulheres protegidas pela Previdência do que de homens, os valores dos benefícios pagos a elas são, em média, inferiores aos valores daqueles pagos a eles. Em dezembro de 2015, enquanto o valor médio dos benefícios ativos no RGPS foi de R$ 1.101,13, o valor médio benefícios pagos aos homens foi de R$ 1.260,41 e às mulheres de apenas R$ 954,78. Ou seja, uma diferença a mais em favor dos homens da ordem de 32%. Por outro lado, em 2014, ainda havia cerca de 24,3 milhões de pessoas sem proteção social no país, 44% delas do sexo feminino. Ao invés de propor soluções para a inclusão de mais mulheres no sistema e aumentar o valor dos benefícios previdenciários, a PEC 287 adota medidas que retardam a aposentadoria, arrocham os valores dos benefícios e até mesmo ampliam a exclusão previdenciária entre as mulheres.

Mudanças propostas para a aposentadoria feminina

Conforme as regras atuais, as trabalhadoras brasileiras vinculadas ao Regime Geral da Previdência Social (RGPS) podem se aposentar depois de 30 anos de contribuição ao sistema ou após 60 anos de idade, com um mínimo de 180 contribuições (equivalente a 15 anos). Ou seja, em relação aos homens, as mulheres têm um desconto de 5 anos nos requisitos mínimos de tempo de contribuição ou idade necessários para se aposentar. Se forem servidoras públicas, vinculadas aos Regimes Próprios de Previdência Social (RPPSs), elas precisam ter, adicionalmente, no mínimo 55 anos de idade, 10 anos no serviço público e 5 anos no cargo, para se aposentar com 30 anos de contribuição, ou esses mesmos tempos no serviço público e no cargo, para se aposentarem por idade, aos 60 anos, com vencimentos proporcionais ao tempo de contribuição. As professoras da educação básica e as trabalhadoras rurais constituem exceções a essas regras gerais e podem se aposentar de modo antecipado, em relação às demais trabalhadoras. Desde que cumpram outros requisitos do RGPS ou do RPPS, as trabalhadoras rurais podem se aposentar por idade aos 55 anos e as professoras, com 25 anos de contribuição em atividade de magistério.

Mas como já foi mencionado, se a PEC 287 for aprovada na forma original, a aposentadoria por tempo de contribuição será extinta e a idade mínima para as mulheres se aposentarem passará a ser de 65 anos, igual à dos homens, e sem exceções. O tempo mínimo de contribuição também será alterado, passando de 180 meses, ou 15 anos, para 300 meses, ou 25 anos.

As justificativas que vêm sendo usadas, desde a Constituição de 1988, para se manterem regras que antecipam a aposentadoria das mulheres em cinco anos são as desigualdades de gênero, que, historicamente, têm caracterizado o mercado de trabalho e as relações familiares, no país. Mas, segundo o atual governo, não faz mais sentido manter essa diferença por um conjunto de razões de natureza atuarial, demográfica e socioeconômica, como: a) as mulheres vivem mais do que os homens e contribuem por menos tempo, onerando o caixa da Previdência; b) há uma tendência internacional no sentido de se eliminarem as diferenças de idade de aposentadoria entre os sexos; c) a participação das mulheres no mercado de trabalho tem crescido e os diferenciais de salário, se reduzido; e d) o trabalho doméstico não remunerado já não absorve tantas horas de dedicação das mulheres porque houve redução no tamanho das famílias e difusão massiva de tecnologia em eletrodomésticos nos lares brasileiros ((MOSTAFA et al (2017). Além disso, como vem sendo dito reiteradamente pelo Secretário Nacional de Previdência Social, Marcelo Caetano, não é papel da Previdência corrigir distorções do mercado de trabalho.

Esses argumentos oficiais são, no entanto, muito questionáveis. Em primeiro lugar, segundo o IBGE, a diferença de expectativa de vida entre homens e mulheres cai desde 2000, com projeção de queda ainda maior até 2060. Além disso, a diferença na expectativa de sobrevida, a partir de 65 anos, é de apenas 3 anos.

Em segundo lugar, não é difícil demonstrar que a tradicional divisão sexual do trabalho, que atribui ao homem o papel de provedor da família e à mulher o de cuidadora da casa e dos dependentes, ainda permanece com força na sociedade brasileira, a despeito das muitas conquistas obtidas pelas mulheres nas esferas pública e de mercado, nas últimas décadas. Segundo a Pnad, em 2006, 92% das mulheres ocupadas no país declararam realizar tarefas domésticas e de cuidados, contra apenas 52,1% dos homens ocupados. Em 2015, quase 10 anos depois, esses percentuais praticamente não haviam se alterado, com 91% das mulheres e 53% dos homens declarando o envolvimento em algum tipo de trabalho doméstico. Por outro lado, considerando a dupla jornada, ou seja, o somatório das horas dedicadas aos afazeres domésticos e ao trabalho na ocupação econômica, as mulheres praticaram, em 2014, jornada semanal média de 54,7 horas, contra 46,7 horas, no caso dos homens. Isso significa que elas trabalharam a cada semana, em média, 8 horas a mais do que os homens, o que, em termos anualizados, corresponde a um excedente de 66 dias (mais de dois meses) de trabalho, considerando jornada padrão de 44 horas semanais. E, extrapolando esse excedente para o tempo de contribuição à Previdência, significa que, em média, com 25 anos de trabalho, que é o mínimo requerido para elas se aposentarem, as mulheres já teriam cumprido quase 30 anos (MOSTAFA et al, 2017).

Em terceiro lugar, apesar dos avanços, é inegável também que as desigualdades entre homens e mulheres no mercado de trabalho ainda são significativas. Até hoje, os indicadores mostram a menor participação das mulheres na atividade econômica, com inserção em ocupações mais precárias e/ou associadas ao papel do cuidado com a família, menores rendimentos e maiores taxas de desemprego e de informalidade. A taxa de participação feminina apresentou profundo crescimento no Brasil, nos últimos 55 anos, passando de 16,5%, em 1960, para 54,4%, em 2015. Entretanto, o envolvimento das mulheres na atividade produtiva ainda é pequeno, quando se leva em conta que os homens tinham, em 2015, participação de 76,2% no mercado de trabalho. Entre 2006 e 2015, houve, inclusive, queda de 4,4 pontos percentuais na taxa de participação feminina, ao passo que a taxa de participação dos homens se manteve relativamente estável.

As mulheres também são sobrerrepresentadas em ocupações menos valorizadas socialmente do que os homens. Em 2015, as ocupações em que elas mais se concentravam estavam nas áreas de educação, saúde e serviços sociais (19%), comércio e reparação (17%), e serviços domésticos (14%), todas tidas como extensão do trabalho doméstico não remunerado (limpeza, educação e cuidados). Com relação aos rendimentos, as mulheres receberam, em 2015, 18,9%3 menos do que os homens em atividades formais, com a mesma carga horária de trabalho e, apesar de terem, em média, mais anos de estudo. Incluindo o trabalho informal, essa diferença fica ainda maior, com a remuneração média das mulheres 30% abaixo da recebida pelos homens4. As taxas de desocupação femininas também permaneceram bastante superiores às masculinas: chegaram ao patamar de 11,7%, em 2015, contra 7,9%, para os homens. Por fim, existiam, no mesmo período, 35,5% de mulheres ocupadas sem carteira de trabalho, contra 18,3% de homens nessa condição.

Em quarto lugar, se é verdade que há uma tendência internacional de equiparação das idades mínimas de aposentadoria entre os sexos, também é verdade que os países europeus, onde isso mais ocorreu, têm níveis menores de desigualdades no mercado de trabalho, possuem políticas públicas específicas voltadas para as famílias, visando estimular uma divisão mais equitativa do trabalho reprodutivo entre homens e mulheres. Esses países também têm ampla rede pública de amparo aos idosos, o que é fundamental em sociedades com estrutura etária mais envelhecida, para desonerar as mulheres da sobrecarga adicional do cuidado com os ascendentes. As iniciativas do governo brasileiro nessa esfera são praticamente inexistentes.

Em resumo, a discriminação sofrida pelas mulheres nos espaços público e privado e a deficiência das políticas públicas, que motivaram os constituintes a criarem, por meio da aposentadoria antecipada, uma espécie de “compensação” em favor delas, ainda se mantêm, impondo a elas muitas penalidades ao longo da vida. Isso explica porque a aposentadoria por idade é a modalidade de benefício com maior incidência entre elas. Segundo informações de Mostafa e outros (2017), entre as aposentadorias femininas concedidas em 2014, as mulheres tiveram, em média, 22,4 anos de contribuição.

Considerando apenas a aposentadoria por idade, 50% das mulheres que acessaram esse benefício comprovaram em média 16 anos de contribuição apenas.

Ou seja, por não conseguirem construir uma trajetória laboral mais estável e protegida, as mulheres não conseguem comprovar um tempo de contribuição mais alongado. Nesse contexto, as propostas de convergir as idades de aposentadoria entre os gêneros e aumentar em 10 anos as contribuições previdenciárias mínimas são extremamente injustas e podem significar, para muitas trabalhadoras, a impossibilidade de um dia acessar o benefício.

Mudanças nas pensões por morte e no acúmulo de benefícios

Em junho de 2015, a Lei nº 13.135 alterou, para os beneficiários do RGPS, as regras de acesso e o tempo de duração das pensões por morte, introduzindo critérios como tempo de contribuição, tempo da união e idade do beneficiário. Essa mudança dificultou o acesso e reduziu o tempo de duração do benefício, principalmente no caso de cônjuges jovens. Agora a PEC 287 propõe estender os critérios da Lei 13.135/2015 também aos beneficiários dos RPPSs. Além disso, a proposta desvincula o valor das pensões do salário mínimo, permitindo que o valor do benefício possa ser, nos casos de casais sem filhos, de apenas R$ 562,20. A emenda introduz uma cota familiar de 50% no cálculo das pensões, com adicionais de 10% para cada dependente, com limite de 100% do benefício. E essas cotas não são mais reversíveis para os demais dependentes da família. Ou seja, o valor real das pensões diminui na medida em que um beneficiário deixa de ser dependente (se torna maior de 21 anos) ou morre, ao contrário da regra vigente até o momento. Por fim, fica proibido o acúmulo, por um mesmo beneficiário, de duas ou mais pensões ou de aposentadoria própria e pensão por morte, além de ficar proibido acumular duas ou mais aposentadorias de um mesmo regime5.

Essas restrições, se aprovadas, penalizarão adicionalmente as mulheres. Em 2015, segundo o Anuário Estatístico da Previdência Social, o total de pessoas que receberam pensão por morte foi de 7,4 milhões, correspondendo a 27,1% do total de benefícios previdenciários. Nesse contingente de beneficiários, 84% (ou 6,2 milhões) eram mulheres e 16% (ou 1,1 milhões), homens. Além desses que receberam apenas pensão, 2,3 milhões (8% do total de beneficiários de previdência) acumularam benefícios de aposentadoria e pensão, sendo 84% mulheres e (ou 1,97 milhões) 16% (ou 364 mil) homens.

Embora as mulheres sejam maioria entre os pensionistas, boa parte das pensões por morte recebidas por elas possui valor extremamente baixo. Em 2015, do total desse tipo de benefício destinado às mulheres, 53% eram de um salário mínimo e 23% estavam na faixa de um a dois salários mínimos. Ou seja, três quartos das pensões por morte recebidas pelas mulheres não ultrapassavam dois salários mínimos. A importância das pensões por morte para as mulheres é grande, sobretudo na faixa etária de 60 anos ou mais. Segundo dados da Pnad, em 2015, enquanto 15,2% das mulheres dessa faixa etária são pensionistas, os homens nessa condição são apenas 1,3%. E entre as pessoas dessa faixa etária que acumulam aposentadorias e pensões, elas representam 11,1% e os homens, apenas 2,7.

Fonte: DIEESE - "clique aqui e leia na íntegra"