Corona vírus e a relação contratual

Possibilidade de Revisão ou Resolução de Contratos em Decorrência do COVID-19

Os acontecimentos decorrentes da pandemia do Novo Corona Vírus - COVID-19 além das consequências para a saúde pública mundial advieram sérias consequências de natureza social e financeira que decorrem principalmente da necessidade do afastamento social necessário como prevenção do alastramento da doença.

No momento ainda não é possível medir todas os resultados da pandemia, entretanto é possível vislumbrar que a suspensão de atividades econômicas, que resultam na diminuição ou até interrupção de obtenção de renda trará dificuldades para muitos no cumprimento de contratos já avençados.

Os contratos são negócios jurídicos que envolvem duas ou mais pessoas, jurídicas ou físicas.

Em regra geral os contratos criam obrigações entre as partes dentro do que restou estabelecido entre elas, o que resulta em verdadeira lei entre as partes.

Essa regra é a que em direito se denomina pacta sunt servanda, que tem por objetivo estabelecer um regime de normas visando evitar o caos, com o objetivo de manter a força dos acordos de vontades.

No entanto, essa rigidez não pode levar a injustiça e ao desequilíbrio entre os contratantes, principalmente em momentos de dificuldades onde cabe ser estabelecida uma relativização da máxima jurídica do pacta sut servanda.

Visando salvaguardar as partes do possível desequilíbrio é que surgem as regras de flexibilização do pacta sunt servanda, como visão moderna da função do contrato. Nessa nova visão não se busca exclusivamente atender aos interesses das partes contratantes, sim de entender o contrato como meio de modificação da realidade social. Assim, a partir da edição do Código Civil Brasileiro de 2002, os contratos são abordados pela perspectiva dos princípios da função social e da boa-fé objetiva, com a limitação da liberdade de contratar aos limites da função social do contrato, especialmente no art. 421 do Código Civil.

Há assim forças contrária a reger os contratos. Primeiramente, como regra geral o pacta sunt servanda, o da força obrigatória dos contratos. E ,de outro lado, na busca do equilíbrio e da justiça social, a teoria da imprevisão que flexibiliza a regra geral, principalmente quando se está diante de pessoas de diferentes naturezas e vertentes sociais.

A Teoria da Imprevisão não é instituto novo, remanesce do Código de Hamurabi, quando era denominada como cláusula rebus sic stantibus, que significa enquanto as coisas estão assim.

Para a aplicação da teoria da imprevisão é importante que se apresentem para o contratante situações delimitadoras.

O Código Civil Brasileiro, atual traz no artigo 478 os elementos que possibilitam a resolução ou revisão do contrato por onerosidade excessiva: I) alteração da realidade em que foi realizado o negócio, que não poderia ter sido prevista pelas partes; II) oneração excessiva para uma das partes, com concomitante vantagem extrema para a outra contratante; e III) a necessidade que os contratos sejam de execução diferida ou continuada.

No art. 421 do Código Civil foi inserido o parágrafo único a partir da vigência da Lei da Liberdade Econômica (Lei 13.874/2019) que que estabeleceu o princípio da intervenção mínima nos contratos em obediência a força vinculante dos contratos prevendo a revisão contratual no caso de excepcionalidade.

Assim para a aplicação do art. 478, e da teoria da imprevisão deve haver a partir daquele momento, onerosidade excessiva que não se confunde com a impossibilidade pura simples do cumprimento da prestação por caso fortuito e força maior, nem dificuldade de adimplemento que constitui condição do devedor e não qualidade da prestação.

Quando se configura a onerosidade excessiva o cumprimento da obrigação de pagar, de certa maneira, ainda é possível e não existe a perda do objeto, embora essa se torne custosa em virtude de outros motivos.

Outro requisito ensejador a possibilidade da aplicação da teoria da imprevisão é a ocorrência de evento extraordinário e imprevisível que se estenda para uma camada significativa da sociedade, de caráter temporal.

Portanto, os acontecimentos imprevisíveis e extraordinários, são aqueles inevitáveis, cuja prevenção é algo impossível e mesmo que possam ser previsíveis, suas consequências tornam-se insuscetíveis de reparação.

Um outro requisito para a aplicação da teoria da imprevisão é o excessivo desequilíbrio contratual entre as partes, em que o negócio contratual que resulte no enriquecimento de uma das partes e a ruína da outra.

Uma vez que o cumprimento do contrato se dá em espaço temporal muitas vezes de anos, se insere em realidade social, não é negócio isolado, ficando sujeito às incertezas inevitáveis do futuro, e por isso a teoria da imprevisão se aplica quando há modificação das circunstâncias de forma a onerar excessivamente uma das partes, na busca de retomar o equilíbrio em vista da alteração da realidade em que foi celebrado o contrato.

Ao mesmo tempo há proteção contra o enriquecimento sem causa de um dos contratantes, mesmo que não intencionalmente, em detrimento da parte prejudicada (art.884 CC). Além dos requisitos anteriores, somente se adapta a teoria da imprevisão aos em que uma das partes arca com a sua prestação em momento posterior ou por prestações continuadas.

Assim a teoria da onerosidade excessiva deve funcionar de maneira excepcional, como forma de se evitar as injustiças que surgem de mudanças sociais e econômicas. Por todos os aspectos acima destacados se verifica a possibilidade de revisão ou até resolução contratual com base na pandemia do COVID-19.

O caso é de clara excepcionalidade, verificada em vista das necessárias imposições de políticas públicas para a contenção da disseminação do vírus.

Quantas prestações de serviços e locações, por exemplo, foram interrompidas a partir da data da imposição do necessário afastamento social?

Com a suspensão de atividades de aferição de renda inúmeras obrigações ajustadas deixaram de ser cumpridas ou estão prejudicadas, o que torna a revisão ou até a rescisão imprescindíveis.

Cumpre, entretanto, que sejam analisados de forma pormenorizada cada caso, mesmo que não se escape da excepcionalidade em todos os casos.

Pela introdução da Lei de Liberdade Econômica foi inserido o art. 421-A no Código Cívil que estabelece uma limitação a revisão contratual a casos excepcionais.

Mesmo que nos contratos de natureza civil e empresariais haja paridade e simetria entre as partes, a situação atual de pandemia, que trouxe as restrições no exercício de atividades, que caracterizam eventos imprescindíveis que resultam no afastamento da presunção de paridade e simetria, ou seja de igualdade.

Dessa forma, o princípio do pacta sunt servanda, que considera o contrato como lei entre as partes, na situação atual deve ser flexibilizada considerando a aplicação do rebus sic stantibus, visto que as condições atuais não são as mesma que existiam quando houve o ajuste contratual.

Em casos de excessiva onerosidade pela ocorrência de fatos imprevisíveis e extraordinários, há inclusive a possibilidade da resolução contratual segundo prevê o art. 478 do Código Civil.

Em situações como esta é primordial o papel do poder judiciário para coibir qualquer desequilíbrio contratual causado pelo acontecimento imprevisível e inevitável, alheio a vontade das partes, que gere onerosidade excessiva a um dos contratantes.

Mais ainda se acentua a necessidade da teoria da imprevisão nos casos dos contratos em que as cláusulas são postas de forma potestativa por um dos contratantes e acatada pelo outro, como é o caso dos contratos de adesão.

Se faz necessário, então, a resolução ou modificação equitativa de cláusulas em harmonia com ordem econômica vigente. Podendo neste casos buscar o meio menos gravoso para as parte com a aplicação do art. 479 do Código Civil que faculta que “ A resolução poderá ser evitada, oferecendo-se o réu a modificar eqüitativamente as condições do contrato.”

Nestes casos o princípio da segurança jurídica não pode ser invocado contra o contratante que opõe a teoria da imprevisão pelos fatos relevantes decorrentes desse desarranjo financeiro, pois ao contrário esse princípio está mais em sua defesa vez que no momento é a parte mais prejudicada, e tal princípio busca pacificar e harmonizar as relações jurídicas. A pandemia está em muitos caso estabelecendo instabilidade social e econômica, como um efeito gravo no meio social, impossibilitando o cumprimento das regras e condições estabelecidas anteriormente quando do ajuste contratual, em fase de situação totalmente diversa da atual.

Na verdade, a aplicação da teoria da imprevisão, do princípio do rebus sic stantibus, está no momento a trazer a possibilidade da garantia da plena e integral aplicação do princípio da segurança jurídica e da certeza do direito, impedindo a imposição de dificuldades financeiras e econômicas capazes de atingir inclusive o primordial princípio da dignidade da pessoa humana.

Cumpre abrir um adendo que ressalta ainda mais a possibilidade de revisões e rescisões contratuais, quais sejam nos casos de contrato de consumo onde o Código de Defes ado consumidor, em seu art. 6º, V, consagra a teoria da imprevisão em favor do consumidor dispensando o elemento da imprevisibilidade.

Por conseguinte, o consumidor pode pleitear a revisão do contrato quando a circunstância superveniente desequilibrar a base objetiva do contrato, impondo-lhe prestação excessivamente onerosa.

Assim é possível buscar a revisão das taxas de juros por conta da situação atual. É possível em momento tão delicado buscar contato com o outro contratante e buscar formas de parcelamento mais amenas, que caibam no orçamento.

Aqueles que estiverem em tais situações de dificuldade no cumprimento de obrigações contratuais podem e devem buscar junto ao operadores do direito ( advogados, assistências judiciárias, defensorias e juizados especiais, câmaras de conciliação e mediação) solução jurídica.

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Dra Viviana Menna  Dra. Viviana Menna