Cancelamento de contrato de financiamento de veículo – Análise a partir do CDC e da realidade contratual aplicada

A PRÁTICA NAS RELAÇÕES CONTRATUAIS

Não são raras as pesquisas e publicações divulgadas nas mídias impressas e virtuais que abordam conteúdo referente ao aumento da compra de veículos automotores por parte dos consumidores de tal bem móvel. Os estudos revelam que, dependendo do cenário econômico e social, as vendas oscilam para mais ou para menos, aumentando ou diminuindo o lucro das fabricantes/montadoras/concessionárias, sendo possível definir que o número de carros vendidos até pode diminuir em certo cenário, contudo não cessa, de forma que os veículos continuam sendo ofertados e vendidos constantemente no comércio automotivo.

Diante dessa informação, ao se levar em consideração qual a forma utilizada pelos consumidores para concretizar a compra do seu veículo, importante mencionar que o financiamento com intermédio das instituições financeiras tem se tornado cada vez mais frequente, sendo umas das principais formas utilizadas pelos Brasileiros para adquirir o seu bem móvel automotor.

Carros novos estacionados em fila

Postas as duas premissas, outra se torna inevitável: quando o comprador que utilizou o financiamento não consegue honrar com suas obrigações financeiras contratuais, vindo a se tornar inadimplente. Essa circunstância é corriqueira frente aos contratos de compra e venda de veículos firmados, situação que enseja dúvidas quanto à possibilidade ou não de cancelamento do contrato, quais os direitos que se originam diante dessa problemática, bem como quais direitos repercutem no âmbito patrimonial do vendedor e do comprador.

O contrato de financiamento para a compra de veículos envolve três partes bem distintas: (I) o estabelecimento comercial que disponibiliza o bem no mercado, sendo o vendedor; (II) o consumidor final que objetiva adquirir o bem disponibilizado, sendo o comprador; (III) a instituição financeira que oferece o recurso financeiro para financiamento, sendo o banco.

Quando o consumidor compra (através do financiamento) o veículo na concessionária escolhida por ele, há a concretização de dois contratos, um com a concessionária e outro com o banco, sendo este ultimo o responsável por gerir os encargos do financiamento pactuado. Ao se tornar inadimplente, o consumidor passa a descumprir o contrato realizado com a instituição financeira.

A questão principal é: será possível haver o cancelamento do contrato de financiamento com a posterior devolução do bem comprado? Será possível exercer o direito de arrependimento diante dessa situação?

Imaginemos a situação em que um comprador “X”, comprou um veículo na concessionária “Y”, através de um contrato de financiamento junto ao banco “Z”. Após usar o bem por alguns meses, se arrependeu da compra. Por motivos financeiros e afins viu que não conseguiria mais cumprir com a prestação mensal contratada, ocasião em que decidiu cancelar o financiamento e devolver o bem.

Nessa situação devemos ter todo o cuidado necessário para averiguar o teor das cláusulas contratuais assinadas pelas partes. O cancelamento do financiamento poderá até ser possível, mas gerará encargos pela rescisão do contrato e será diligenciado pelo banco, que não medirá esforços para reaver a quantia necessária em seu proveito. Como dito, o contrato deve ser analisado especificamente, pois cada contrato estabelecerá o montante final a ser dispendido frente às situações de cancelamento, sendo certo que a financeira irá cobrar por todos os custos e encargos existentes.

A primeira opção do consumidor é procurar o banco para uma rescisão amigável, ocasião em que deverá propor a devolução amigável e voluntária do bem envolvido. Nesse caso, o banco procederá com a alienação do veículo, geralmente através de leilão, e o valor obtido com a venda será usado pelo banco para quitar as parcelas restantes até o final do financiamento contratado, bem como aquelas que estiverem em atraso. O valor que sobrar dessa subtração será devolvido ao consumidor.

Outra opção seria transferir a dívida para um terceiro consumidor. Aqui o terceiro assumiria a dívida do contrato inicialmente pactuado, ou seja, passaria a ser o responsável pelo pagamento do restante das parcelas. Há que se advertir que a transferência da dívida para um terceiro dependerá da análise e aprovação pelo banco financiador, visto que o terceiro deverá se enquadrar nas diretrizes impostas pelo banco, no que tange a sua aceitabilidade enquanto devedor. Sendo o terceiro aprovado pelo banco, o comprador originário deixa de figurar como parte no contrato, transferindo todas as responsabilidades obrigacionais.

Nas duas opções o consumidor deverá ficar atento quanto aos encargos contratuais e legais, para de fato analisar qual a melhor decisão a ser tomada. O arrependimento do consumidor é possível sim, mas ele irá sofrer as consequências por tal atitude, na medida em que não há nenhum instituto no direito pátrio que acoberte o arrependimento puro e simples (por motivo interno/subjetivo) sem ônus para a parte arrependida. Se o consumidor se arrependeu da compra/financiamento deverá arcar com as derivações da transação realizada.

Chave de Automóvel

DIREITO DE ARREPENDIMENTO NO CDC

A legislação consumerista, através do artigo 49, nos traz um regramento específico pertinente ao direito de arrependimento. O dispositivo legal nos informa dois elementos necessários para que se concretize o arrependimento sem que haja ônus para a parte arrependida (aqui não se trata de arrependimento puro e simples, conforme dito logo acima). O artigo do CDC trata do arrependimento feito em um limite temporal, bem como com um limite geográfico, de localização. Vejamos o artigo 49:

Art. 49. O consumidor pode desistir do contrato, no prazo de 7 dias a contar de sua assinatura ou do ato de recebimento do produto ou serviço, sempre que a contratação de fornecimento de produtos e serviços ocorrer fora do estabelecimento comercial, especialmente por telefone ou a domicílio.
Parágrafo único. Se o consumidor exercitar o direito de arrependimento previsto neste artigo, os valores eventualmente pagos, a qualquer título, durante o prazo de reflexão, serão devolvidos, de imediato, monetariamente atualizados.

Conforme se vê, o limite temporal é o prazo de 07 dias a contar da assinatura do contrato ou do recebimento do produto. O limite geográfico é a ocorrência de a contratação ter sido firmada fora do estabelecimento comercial. O parágrafo único nos informa que o período de 07 dias é considerado como prazo de reflexão. O consumidor terá direito a receber todos os valores eventualmente pagos, a qualquer título, durante o prazo de reflexão.

Enquadrando o disposto no artigo 49 do CDC ao caso de cancelamento da compra de um veículo, com o consequente cancelamento do contrato de financiamento, uma questão é crucial ser averiguada: Se a concretização da compra e da assinatura dos contratos dentro da estrutura física da loja/concessionária significa que o contrato foi firmado fora do estabelecimento comercial do banco/financeira. Esse ponto é extremamente importante e deverá ser analisado em cada caso concreto.

Aqui há uma dubiedade de posicionamento. Há o entendimento de que a compra na concessionária não importa impreterivelmente que o contrato tenha se dado fora do estabelecimento do banco, posto que um contrato deriva do outro, e muitas vezes as instituições financeiras instalam “balcões de negócios” dentro das concessionárias. Noutro ponto, há entendimento afirmando que a contratação do financiamento deveria se dar dentro das dependências do banco, sendo o contrato de financiamento realizado nas dependências da concessionária considerado fora do estabelecimento.

Apenas no viés do segundo entendimento é que seria possível o consumidor se valer do período de reflexão e de arrependimento, podendo assim cancelar o contrato e restituir os valores pagos. Caso contrário, não terá tais direitos.

Essa linha de entendimento é tênue. Nos casos levados ao Judiciário, verifica-se que a jurisprudência não adota um entendimento claro e direcionado, de maneira que a análise do caso concreto com a demonstração do conjunto probatório é que irá determinar se a compra na concessionária se enquadrará no limite geográfico posto no artigo 49 do Código Consumerista. Deverá ser demonstrado na exposição fática se houve participação ou não da instituição financeira na negociação da compra do bem; se o banco ofereceu dentro da estrutura da concessionária as explicações necessárias e pertinentes ao contrato de financiamento; se o banco cumpriu com o dever de informação atinente às obrigações contratuais. Ou seja, deverá ser verificada a participação direta da instituição financeira dentro da sede da concessionária, por meio de agente credenciado, que preste todas as informações necessárias do contrato de financiamento, fazendo valer a aplicação do artigo 6º do CDC, que dispõe ser direito básico do consumidor a prestação da informação adequada e clara sobre os diferentes produtos e serviços, com especificação correta de quantidade, características, composição, qualidade, tributos incidentes e preço, bem como sobre os riscos que apresentem.

Segue duas decisões judiciais, a primeira em que foi considerado o contrato na concessionária fora do estabelecimento comercial da financeira, ocasião em que a busca e apreensão do banco se deu por improcedente. Na segunda decisão não se configurou a contratação na concessionária como sendo fora do estabelecimento do banco. Vejamos:

RECURSO ESPECIAL Nº 930.351 - SP (2007/0045219-3) EMENTA
Consumidor. Recurso Especial. Ação de busca e apreensão. Aplicação do CDC às instituições financeiras. Súmula 297/STJ. Contrato celebrado fora do estabelecimento comercial. Direito de arrependimento manifestado no sexto dia após a assinatura do contrato. Prazo legal de sete dias. Art. 49 do CDC. Ação de busca e apreensão baseada em contrato resolvido por cláusula de arrependimento. Improcedência do pedido.
- O Código de Defesa do Consumidor é aplicável às instituições financeiras. Súmula 297/STJ.
- Em ação de busca e apreensão, é possível discutir a resolução do contrato de financiamento, garantido por alienação fiduciária, quando incide a cláusula tácita do direito de arrependimento, prevista no art. 49 do CDC, porque esta objetiva restabelecer os contraentes ao estado anterior à celebração do contrato.
- É facultado ao consumidor desistir do contrato de financiamento, no prazo de 7 (sete) dias, a contar da sua assinatura, quando a contratação ocorrer fora do estabelecimento comercial, nos termos do art. 49 do CDC.
- Após a notificação da instituição financeira, a cláusula de arrependimento, implícita no contrato de financiamento, deve ser interpretada como causa de resolução tácita do contrato, com a consequência de restabelecer as partes ao estado anterior.
- O pedido da ação de busca e apreensão deve ser julgado improcedente, quando se basear em contrato de financiamento resolvido por cláusula de arrependimento. Recurso especial conhecido e provido.
RECURSO ESPECIAL Nº 1.665.146 - DF (2017/0074785-8) RELATORA : MINISTRA MARIA ISABEL GALLOTTI RECORRENTE : MARIA MADALENA DA CONCEICAO ADVOGADO : DEFENSORIA PÚBLICA DO DISTRITO FEDERAL RECORRIDO : BV FINANCEIRA SA CRÉDITO FINANCIAMENTO E INVESTIMENTO ADVOGADO : GUILHERME CORREA GRISI E OUTRO (S) - DF028912 RECORRIDO : BRN DISTRIBUIDORA DE VEICULOS LTDA ADVOGADO : MARCELO BORGES FERNANDES E OUTRO (S) - DF016912 DECISÃO (...)
Nas razões do especial, a recorrente alega violação do art. 49 do Código de Defesa do Consumidor, afirmando que "sequer retirou o veículo da Concessionária, (...), exercendo, assim seu direito de arrependimento" (fl. 294), no terceiro dia após a compra. Acrescenta que, "embora o contrato tenha sido assinado na concessionária, não havia qualquer posto de trabalho da financeira dentro do estabelecimento, vez que os dados foram encaminhados e que posteriormente é que foi redigido o contrato" (fl. 295). Passo a decidir. Inicialmente verifica-se que a arguição de que não havia posto da financeira dentro da concessionária, não foi dirimida pela Corte de origem, que entendeu devidamente fundamentado seu acórdão, sem necessidade de se pronunciar sobre ponto que não julgou necessário ao deslinde da questão. Ressalte-se, ademais, que a recorrente não aponta qual o dispositivo legal que ampara a citada alegação, sendo inviável o provimento do especial pela aplicação das Súmulas 282 e 284 do STF. No mais, o Tribunal de origem, com base nos fatos e provas dos autos, concluiu que a compra foi realizada dentro da concessionária, assim se pronunciando (fl. 285): (...) o contrato de financiamento foi assinado no estabelecimento da concessionária de veículos, e não por telefone ou a domicílio. Assim, ainda que não o tenha sido no estabelecimento bancário da segunda ré, tal fato, por si só, não atrai a incidência do art. 49 do CDC, especialmente por ser comum a existência de postos de atendimento bancário no interior de grandes concessionárias de veículos. (...)
(STJ - REsp: 1665146 DF 2017/0074785-8, Relator: Ministra MARIA ISABEL GALLOTTI, Data de Publicação: DJ 07/06/2017)

CONCLUSÃO

Portanto, conforme todo o exposto neste breve texto pode-se concluir pela possibilidade de cancelamento do contrato de financiamento de veículo automotor, seja pela forma amigável, mediante negociação com o banco (leilão ou transferência de dívida), seja pela forma indicada no artigo 49 do CDC, que levará em consideração o elemento temporal (07 dias) e o geográfico (fora do estabelecimento). Em ambos os casos, as nuances e as particularidades de cada um deverão ser analisadas em sua plenitude, na íntegra, para que o direito do consumidor seja garantido e não haja prejuízos na sua esfera patrimonial e moral.

Dr Beloni Uchoa de Araujo  Beloni Uchoa de Araujo